domingo, 24 de maio de 2015

O presente esperado


Quando Miguel nasceu eu já sabia que queria outre filhe1. A maternidade foi algo intenso, enorme, uma invasão de questionamentos, sentimentos, sensações, quereres, buscas, mudanças.

Lembro do dia em que trouxemos Miguel pra casa depois do parto hospitalar. Uma paz, uma sensação de completude, de alegria, de união. Eu estava tão feliz que, na mesma hora, me veio um medo de que algo ruim pudesse acontecer. E aconteceu.

Prestes a completar dois meses de família descobrimos um tumor de 7,5 cm no cérebro do Tiago, meu marido.

Foi um baque. Um susto. Um balde de água fria. Um terremoto. Mudança brusca no puerpério. Fragilidade, lágrimas, dor, desespero, medo, insegurança. O que será de nós?

Eu era um mar de lágrimas me esgueirando para carregar meu bebê. Mas algo aconteceu, uma tomada de consciência, uma força que eu desconhecia, gotinhas de rescue, enfim, num dado momento senti-me forte, potente, que eu poderia sim segurar a onda, apoiar meu companheiro, criar meu filho. E foi nessa confiança que me agarrei nos meses que se seguiram.

A operação ocorreu um mês depois. Mais de 10 horas de cirurgia e à meia-noite me liga o médico para dar notícias. Disse que foi um sucesso, mas que não puderam remover tudo para evitar sequelas, não lembro se disse algo sobre a gravidade do tumor, pois era algo que eu não queria ouvir. Lembro sim de questioná-lo se deveríamos armazenar o sêmen do Tiago pois queríamos ter mais filhes, eu já estava com 40 anos, não sabia quanto duraria a químio... “Não dá pra ter mais filho”. “Como?” Explico tudo novamente. “Não dá pra ter mais filho”. Mas por que? Seria hereditário? “É câncer. E é incurável.” Foi assim que recebi a sentença de morte de nossa família como a havíamos planejado.

Foram dias duros. Um mês de hospital. Marido irreconhecível, em seu mundo, recluso. Mas vivo o suficiente para me pedir para dormir com ele alguns dias no hospital pois estava enlouquecendo. Foi assim que Miguel e eu dormimos pelo menos 6 noites ali e fizemos uma revolução. Alguns nos ajudaram, encontraram um berço como aqueles que se vê em filmes da 2a guerra. Outros nos reprovaram. Recebemos a visita de pessoas do hospital questionando nossa escolha ao expor um bebê de três meses àquele ambiente. Foram noites duras. Mas importantes.

Eu insistia que Tiago conseguisse ejacular para armazenarmos seu sêmen, mas ele estava em outra dimensão, em outro lugar, não tinha vontade ou condição de fazer isso.

Na 6a feira anterior ao início da radioterapia ele conseguiu ejacular. Minha mãe estava prestes a entrar no cinema ao lado do hospital. Voltou correndo, colocou o recipiente com o sêmen entre os seios para mantê-lo aquecido conforme indicação da clínica que o armazenaria e pra lá rumou. Sim, queríamos outre filhe e não havia prognóstico que nos fizesse deixar de estar vivos e viver o presente.

Quarenta dias de radioterapia. Um ano de quimioterapia. Exames. Visitas ao oncologista hora com boas notícias, hora não. Incertezas. Esperas. E muita busca por informações, pessoas, vivências, autoconhecimento, conscientização, mudança de paradigmas em várias áreas: saúde, alimentação, estilo de vida, relações, crenças.

Findo esse ano intenso e fundamental na nossa vida a notícia era de que estávamos, pelo menos por hora, livres da quimioterapia. E mais um ano sem quimio significaria que poderíamos engravidar naturalmente. Esse era nosso plano secreto, pois sentíamos os olhares de medo e desconfiança do entorno, de que o tumor poderia voltar a qualquer momento, de que eu já tinha mais de 40 anos.

A medicina ocidental pode ser cruel. Parcial. Arbitrária. Se muitas vezes salva, muitas mais devasta. Se alguns deram um ano e meio de vida pro Tiago, um tio médico, ao telefone e com a naturalidade de quem comenta o clima afirmou que o tumor voltaria em 2 ou 3 anos. Já a minha ginecologista de anos alegou categoricamente que a chance de engravidar, na minha idade, era de 1%.

Mas somos incrédulos, persistentes, vivos, curiosos, abertos. E foram esses anos de cura através de muitas buscas e encontros que nos levaram até o momento em que engravidamos naturalmente após 6 meses de tentativas e muito querer.

Foi uma gravidez difícil, pela minha insistente anemia, pela idade, por já ter um filho pra cuidar, pelos hormônios de gerar uma filha. Mas foi uma gravidez de conexão e consciência.

Eu estava tudo menos preparada para o parto do Miguel, induzido às 42 semanas, com anestesia, hospital e direito a filho desmaiado ao nascer. E nesses anos também pude trabalhar esse parto, entender a minha responsabilidade por ele, pelas escolhas que fiz, pelo quanto o entreguei à medicina, às instituições, ao outro sem me apropriar dele, do meu corpo, da minha capacidade de parir.

Por tudo isso essa gravidez, esse parto e essa filha foram muito queridos, muito esperados e intensamente vividos.

Eu já estava com 40 semanas e 5 dias. A obstetra que me acompanhou no final já indicava indução natural (descolamento de membrana) para a semana seguinte, um filme que eu já tinha visto (ou vivido).

Era 6a feira, dois dias depois do meu aniversário de 44 anos. Estávamos na praça do coco no fim da tarde eu, Miguel e Tiago. Eram 7h da noite e nos preparávamos para ir embora. Vi a primeira estrela no céu e pedi para o parto vir logo. Comecei a caminhar e a bolsa rompeu.

O trabalho de parto pode começar em até 72 horas após a bolsa ter se rompido. Eu porém já sabia que logo começaria. Liguei para minha amiga e vizinha que se ofereceu para receber o Miguel. Chegamos em casa, demos banho e janta e Tiago o levou para lá.

Às 8h da noite começaram as contrações. A equipe se formou rapidamente: doula, parteira, neonatologista. Gente querida. Mulheres amigas na intimidade do nosso lar. Fui para o chuveiro e de lá não mais saí.






Lá colocaram a banheira inflável. Eu sentia completamente cada contração. Sabia onde minha bebê estava. Fizemos um curso de hypnobirthing. Tiago gravou um dos relaxamentos que ouvi durante as últimas semanas de gravidez. Eu só queria ouvir aquilo. Me centrava, me orientava, me conectava. Fiz várias das visualizações indicadas e o colo rapidamente foi se abrindo. Tive algumas contrações mais fortes, umas seis, em que senti vontade de vomitar. Mas elas vinham bem espaçadas entre outras mais brandas. Quanta sabedoria nesse corpo. Eu sabia quando a contração estava pra chegar. Me sentia em total conexão com meu corpo e com o trabalho de parto.









As pessoas entravam e saiam do banheiro. Algumas vezes fiquei lá sozinha, com minha filha. Num dado momento senti que ela estava no canal do nascimento. Meu companheiro me lembrou de uma visualização para esse momento. Em duas contrações Eloísa nasceu. Eram 23:34h.








A cada dia me dou conta da potência desse parto, do quanto ele foi e é importante na nossa vida. E como nossa família se fortaleceu e uniu após esse nascimento.


Novos desafios se nos colocam a cada dia. E isso é viver. Mas seguimos fortalecidos e crentes em nossa capacidade, autorresponsabilidade e amor.
fotos de Paula Poltronix


1Em contato com os textos da amiga querida Letícia Penteado, do blog Anarca é a mãe, tornou-se impossível não estar atenta ao machismo da língua portuguesa. Difícil escrever sem usar a linguagem neutra de gênero.